A PROCURAÇÃO PARA A LAVRATURA DE ESCRITURA DE ALIENAÇÃO DE IMÓVEIS PODE TER EFICÁCIA MESMO APÓS O FALECIMENTO DO MANDANTE
Letícia Franco Maculan Assumpção
Questão tormentosa que costuma se apresentar nos tabelionatos de notas é o pedido de lavratura de escritura em relação a negócios já realizados e quitados há muitos anos, sendo apresentada procuração que não foi revogada, mas havendo notícia de que o mandante já faleceu.
Sabe-se que o Código Civil, em seu art. 682 estabelece que cessa o mandato:
I – pela revogação ou pela renúncia;
II – pela morte ou interdição de uma das partes;
III – pela mudança de estado que inabilite o mandante a conferir os poderes, ou o mandatário para os exercer;
IV – pelo término do prazo ou pela conclusão do negócio.
Apesar do disposto no artigo acima reproduzido, a doutrina explica que a regra da causa extintiva que decorre da morte do mandante é atenuada em virtude das disposições do art. 674 do Código Civil, com fundamento no princípio do periculum in mora. Havendo risco de dano potencial, envolvendo o objeto do mandato, deverá o mandatário concluir negócio já iniciado, mesmo ciente da morte do mandante, de modo a prevenir eventuais prejuízos aos sucessores do mandante ou aos terceiros com quem o mandatário transacionar.
Pode-se entender que o perigo da demora pode se caracterizar pela simples necessidade de os promissários compradores terem que ingressar em juízo para obter a escritura definitiva, o que poderá acarretar danos aos sucessores do mandante e ao próprio mandatário, como o pagamento de custas processuais e honorários advocatícios, além de outros danos que possam ocorrer.
Além do disposto no art. 674 do Código Civil, também o art. 689 determina que “são válidos, a respeito dos contratantes de boa-fé, os atos com estes ajustados em nome do mandante pelo mandatário, enquanto este ignorar a morte daquele ou a extinção do mandato, por qualquer outra causa”.
J.M. CARVALHO SANTOS[1], ensina:
“Deve o mandatário concluir o negócio já começado, se houver perigo na demora. Pressupõe-se, como se vê, o mandato já em execução, quando se verifica a extinção dele por qualquer das causas apontadas, e se ocorre uma urgência tal que não possa o mandato ser abandonado, a não ser com graves prejuízos para os interesses do mandante, ou de seus sucessores, autoriza o Código prossiga o procurador a execução do mandato, sem aguardar novas ordens, nova procuração ou seu substituto. Condição exigida: se houver perigo na demora. Esta a razão decisiva e um dos pontos que bem nítida torna a diferença entre o mandato e a gestão de negócios, na qual o gestor, embora não haja urgência ou perigo na demora, é obrigado a continuar a sua gestão até que os representantes ou herdeiros assumam a direção do negócio começado. É dever do mandatário, verificada a hipótese aqui prevista, concluir o negócio já começado. Se assim não procede e com essa omissão for prejudicado o mandante, responderá o mandatário pelos prejuízos que este sofrer.” (sem grifos no original)
Também a jurisprudência tem atenuado os efeitos do art. 682 do Código Civil no que diz respeito à extinção do mandato pela morte do mandante, afirmando que, se o mandato houver sido outorgado pelo mandante com o propósito de representação em escritura pública referente a negócio jurídico firmado e quitado quando ainda em vida aquele, nada obsta que o mandatário o represente em referido ato, evitando prejuízos aos promissários compradores.
O entendimento do Poder Judiciário tem sido no sentido de que “o mandato passado para a lavratura de escritura de compromisso de compra e venda de imóvel não se extingue pela morte do promitente vendedor se a totalidade do preço já havia sido recebida em vida pelo mandante”: “ANULAÇÃO DE ESCRITURA PÚBLICA – Anulação pretendida sob a alegação de nulidade da alienação de imóveis realizada pela coapelada, na qualidade de mandatária, após o falecimento do mandante – Inaplicabilidade da regra do artigo 1316, II, do Código Civil de 1916 – Mandatária que apenas concluiu negócio começado pelo mandante, fazendo-o diante do evidente perigo na demora – Amparo na regra do artigo 1.308[2] do mesmo Estatuto. Demais documentos não se prestem a ensejar a anulação da sobredita escritura, já que deles não se extrai vínculo obrigacional entre o “de cujus” e os apelantes – Escritura lavrada que não contém máculas a ensejar a anulação pretendida – Improcedência corretamente decretada – Sentença mantida – Recurso improvido. O mandato passado para a lavratura de escritura de compromisso de compra e venda de imóvel não se extingue pela morte do promitente vendedor se a totalidade do preço já havia sido recebida em vida pelo mandante.” (5ª Câmara Cível do TJRJ, Apelação Cível nº 19.007, RDI 10/116-117; no mesmo sentido: 1ª Câmara Cível do TJPR, Apelação Cível nº 1.052/85, RDI 17-18/123-124).
Em 2009, o Tribunal de Justiça de São Paulo, pela sua Coordenadoria de Correições, Organização e Controle das Unidades Extrajudiciais[3] já examinou caso em que foi lavrada escritura utilizando-se procuração, sendo que tinha ocorrido o falecimento do mandante após a conclusão do negócio, mas antes da lavratura da escritura, tendo determinado o registro. Destaca-se, por ser mais relevante, a seguinte parte do voto: “Oportuna, ainda, as sábias ponderações do Desembargador AROLDO MENDES VIOTTI (na ocasião Juiz Auxiliar da Corregedoria), emitidas em 08.02.1989, no parecer referente à Apelação Cível nº 9.675-015, da Comarca de Itapeva: “Restou apurado, assim, que o outorgante vendedor Verceslau Odrozvãoz dos Santos faleceu em 1973, anteriormente, portanto, ao negócio jurídico celebrado em 1981, no qual, representado por mandatário, vendeu imóvel ao apelante. Ninguém questiona que o mandato se extingue, “ex vi legis”, pela morte do mandante (artigo 1.316, inciso II, do Código Civil). (…) Ocorre que não deflui da sistemática legal a conclusão de que ato praticado por mandatário após o falecimento do mandante seja, necessariamente e em todos os casos, inválido ou ineficaz. Ao contrário, o artigo 1.321 do próprio Código Civil contempla hipótese em que tal conseqüência é expressamente afastada. A jurisprudência tem reconhecido outras situações em que admitida a não incidência daquela presunção de invalidade (cf. “Revista de Direito Imobiliário do I.R.I.B.”, volume 10, pág. 116, o volume 17/18, pág. 123). Por isso, em que pese a estranheza e mesmo à suspeição que possam ser geradas por negócio jurídico como o instrumentado no titulo em exame, a sua eventual nulidade, a respectiva inidoneidade á produção dos efeitos a que tende, não emergem de pronto, não resultam de claro diagnóstico de ato vedado por lei. O vício que porventura no ato jurídico se contenha não é daqueles que produzem repercussão na esfera da legislação formal que incumbe aos registradores observar e tutelar. Em outras palavras: pelo motivo apontado, o título não pode ser considerado formalmente imperfeito; a nulidade, se existir, é insista, interna, ao título, não se revelando na esfera registrária em ordem a impedir o ingresso deste.” O inteiro teor do Acórdão está disponível em: https://www.extrajudicial.tjsp.jus.br/pexPtl/visualizarDetalhesPublicacao.do?cdTipopublicacao=5&nuSeqpublicacao=1705) e é abaixo reproduzido, com grifos nossos:
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Ainda em São Paulo, foi julgado em 2005 um procedimento de dúvida, no seguinte sentido:
“EMENTA: Alienação de imóvel com base em procuração. Alienantes falecidos […]. Por se tratar de propósito jurídico maior (regularização fundiária) e tendo sido os instrumentos lavrados com a finalidade certa e declinada, o mandato mantém seus efeitos. Dúvida improcedente.” (Processo nº 000.04.083265-1, São Paulo, D.O.E. 09/02/2005).
Em Minas Gerais, o então Juiz da Vara de Registros Públicos de Belo Horizonte, Juiz Fernando Humberto dos Santos proferiu esclarecedora sentença nos autos n°: 0083821-07.2011, em procedimento de dúvida, tendo esclarecido que é possível a lavratura da escritura mesmo após o falecimento do mandante, desde que se demonstre que o negócio já tinha sido realizado e que a escritura observe exatamente os termos do negócio, não admitindo alteração:
“No caso em tela, mesmo que o falecimento do mandante tenha colocado fim ao mandato, é de se considerar que o mandatário, agindo de boa-fé, e respeitando os estreitos limites do mandato que lhe fora outorgado, poderá lavrar a escritura de compra e venda definitiva. No entanto, assinalo, não poderá estabelecer novas cláusulas ou alterar o estipulado no contrato primevo (promessa de compra e venda). É sabido que o direito brasileiro resguardou o direito das partes em concluírem, através do mandato, os negócios jurídicos iniciados e firmados. Quer isto dizer que, in casu, o mandatário tem sim o poder de lavrar a escritura formalizando o ato definitivo da compra e venda, mas, como já dito, respeitando obrigatoriamente os limites negociais já fixados na promessa realizada anteriormente. A escritura lavrada não pode conter nenhuma divergência com o prometido.“
Há diversos outros julgados admitindo a eficácia da procuração para lavratura da escritura definitiva, mesmo com a morte do mandante, nos casos de mandato outorgado para dar cumprimento a contrato de compromisso de compra e venda, cujo preço já tenha sido recebido: APC 9.329 RJ – RDI n. 6; 1.052/85 TJPR RDI n. 17/18; 19.007 RJ – RDI n. 10; 24.416 SP RDI 3; 2882/91 RJ RDI 33, e decisão da 1ª VRP da Capital do Estado de São Paulo processo n. 000.04.083265-1 em que pese decisões (antigas) em sentido contrário : AC 4149-0/85 e 2597-0/87).
Conclui-se, pois, que, mesmo após o falecimento do mandante, o mandatário, agindo de boa-fé e respeitando os estreitos limites do mandato que lhe fora outorgado, poderá lavrar a escritura de compra e venda definitiva, desde que já tenha sido devidamente realizado e quitado o negócio em vida, o que deve ser demonstrado ao tabelião. O mandatário, no entanto, não poderá estabelecer novas cláusulas ou alterar o estipulado no contrato de promessa de compra e venda. A escritura lavrada não pode conter nenhuma divergência com o prometido.
*Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas, e dos livros Função Notarial e de Registro e Casamento e Divórcio em Cartórios Extrajudiciais do Brasil. É professora e coordenadora da pós-graduação em Direito Notarial e Registral do Centro de Direito e Negócios – CEDIN.
[1] Vide CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO INTERPRETADO, Volume XVIII, 12a edição, Editora Freitas Bastos, p. 274/275.
[2] O Código Civil atual recepcionou o artigo 1.308, nos termos do artigo 674 a seguir transcrito: Art. 647. Embora ciente da morte, interdição ou mudança de estado do mandante, deve o mandatário concluir o negócio já começado, se houver perigo na demora.
[3] Despachos/Pareceres/Decisões 56266/2006 – Acórdão DJ 562-6/6, Data inclusão: 26/03/2009.
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