O PACTO ANTENUPCIAL E A RENÚNCIA À HERANÇA
* Gabriela Franco Maculan Assumpção
** Letícia Franco Maculan Assumpção
INTRODUÇÃO
O pacto antenupcial, também denominado pacto nupcial tem, recentemente, sido objeto de grandes debates. Trata-se de negócio jurídico sui generis do Direito de Família, que tem seu locus próprio no ordenamento jurídico1. O pacto antenupcial possui características próprias: o pessoalismo, o formalismo, o ser nominado e o ser legítimo. É um negócio pessoal, uma vez que só os nubentes podem ser partes; formal, devendo ser realizado por escritura pública; e nominado, pois possui previsão legal.
No Cartório de Registro Civil e Notas do Barreiro, em BH/MG, fomos procurados para lavratura de um pacto antenupcial, tendo sido afirmado pelos nubentes que queriam optar pelo regime de separação total de bens e que gostariam de constar no pacto a renúncia a futura herança e também a direito real de habitação em relação ao imóvel onde residirá a família.
Tendo em vista a importância e atualidade do tema, decidimos escrever o presente artigo. A questão que apresentamos é: o tabelião deve lavrar essa escritura de pacto antenupcial?
1) OS LIMITES PARA O PACTO ANTENUPCIAL
No Brasil o Código Civil estabelece que os nubentes podem, “antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver”, conforme artigo 1.639. Sobre os limites para o pacto, a lei é lacônica, pois o artigo 1.655 somente determina que é “nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei”. Nada mais é dito, restando para o intérprete a fixação dos limites para a convenção2.
Não há dúvida de que o objeto do pacto antenupcial tem que ser lícito. Kümpel3 explica que: “É certo que a autonomia privada dos pactos antenupciais é balizada
1KÜMPEL, Vitor Frederico. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI215954,31047-
Consideracoes+acerca+do+pacto+antenupcial+II. Acesso em: 25 nov. 2019.
2ASSUMPÇÃO, Letícia Franco Maculan. O CONTRATO MATRIMONIAL, O PACTO ANTENUPCIAL E O DIREITO À INTIMIDADE: reflexões sobre o regramento do Brasil e de Portugal. Disponível em: http://www.cnbsp.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MTQ4NjY=&filtro=&D
ata=. Acesso em: 3 dez. 2019.
3 GOZZO, Débora. Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, p. 2.
pelas regras do próprio Código Civil, como fica claro no art. 1.655. Essa limitação, inclusive, pode ser atribuída à própria parte geral do Código, que estabelece como requisito de validade dos negócios jurídicos em geral a licitude do objeto, como se extrai do artigo 104″4.
Cristiano Chaves de Farias e Nélson Rosenvald assim esclarecem sobre o conteúdo do pacto antenupcial:
[…] o seu conteúdo é restrito, exclusivamente, à deliberação
sobre os efeitos econômicos do matrimônio, sendo
absolutamente vedado aos cônjuges dispor sobre os efeitos
pessoais. Assim, será nula de pleno direito (CC, art. 166), não
produzindo qualquer efeito jurídico, qualquer disposição que,
exemplificativamente, libere um dos consortes de prestar
assistência moral ou material ao outro ou mesmo exonere um
dos esposos do dever de fidelidade ou de respeito e lealdade.
Com isso, limita-se ao campo patrimonial a liberdade de
estipulação conferida aos cônjuges, sendo impensável, entre
nós, porque nulas de pleno direito, as disposições
‘hollywoodianas’, através das quais se exige, em pactos pré
nupciais, um número mínimo semanal de encontros sexuais ou
são garantidas indenizações milionárias para a quebra de
obrigações matrimoniais pessoais.5
No artigo 1.653 determina o Código Civil que: “É nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento” A determinação legal de que o pacto seja lavrado por instrumento público fundamenta-se na prévia análise pelo tabelião da legalidade daquilo que está sendo estipulado. Tepedino lembra que, dentre as funções desempenhadas pelos notários, destaca-se a de qualificar juridicamente a vontade das partes, redigindo o instrumento jurídico adequado aos seus interesses, de modo a garantir-lhes eficácia.”6
O notário não é simples receptor de negócios jurídicos, cabe a ele dar à manifestação de vontade das partes uma forma escrita, de forma que a que o negócio jurídico tenha eficácia por ser adequado à lei. Brandelli7afirma que “o tabelião deve moldar juridicamente os negócios privados, a fim de que estes enquadrem no sistema jurídico vigente, prevenindo, por conseguinte, e, evitando ao máximo, que futuros vícios sejam aventados, bem como que lides se instaurem sobre a questão”.
4Segundo o art. 1.655, “É nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei”. Ademais, o art. 104, ao elencar os requisitos de validade dos negócios jurídicos, estabelece “objeto lícito, possível, determinado ou determinável;”
5FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 2 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010. p.240.
6TEPEDINO, Gustavo. O papel do tabelião no ordenamento jurídico brasileiro e a interpretação do art. 38 da Lei 9.514/97. Disponível em: http://civilistica.com/wp-content/uploads/2012/11/O papel-do-tabeli%C3%A3o-civilistica-2.2012.pdf. Acesso em: 25 nov. 2019.
7BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 179.
O tabelião não deve lavrar atos nulos. Sendo o ato nulo, é dever do tabelião orientar as partes e negar a lavratura do ato. No ato nulo, o vício é de ordem pública, que atinge o negócio deste seu surgimento e se pronuncia ex officio.8
2) É POSSÍVEL, NO PACTO ANTENUPCIAL, A RENÚNCIA À HERANÇA DO FUTURO CÔNJUGE?
Mário Luiz Delgado e Jânio Urbano Marinho Júnior defendem9uma nova interpretação ao artigo 426 do Código Civil, afastando-se de uma leitura tradicional do dispositivo. Para eles, a interpretação que vem sendo feita do artigo 426 tem levado à condenação absoluta da renúncia prévia, em pacto antenupcial ou contrato de convivência, de qualquer direito sucessório por parte de cônjuges ou companheiros. Os mencionados doutrinadores argumentam ser possível a renúncia à herança do cônjuge no pacto antenupcial.
Rolf Madaleno10 também defende que cônjuges e conviventes possam, no pacto antenupcial, renunciar ao direito concorrencial previsto no art. 1.829 do Código Civil: Para ele:
“Cônjuges e conviventes podem livremente projetar para o
futuro a renúncia de um regime de comunicação de bens, tal
qual podem projetar para o futuro a renúncia expressa ao
direito concorrencial dos incisos I e II, do artigo 1.829 do
Código Civil brasileiro, sempre que concorram na herança com
descendentes ou ascendentes do consorte falecido. A renúncia
de direitos hereditários futuros não só não afronta o artigo 426
8 O tratamento dado ao ato nulo é diferente daquele dado ao ato anulável. O negócio jurídico meramente anulável nasce válido, e assim permanecerá caso a anulabilidade se não seja levantada no prazo e forma legal, tendo em vista que este vício é de interesse privada, e afasta-se das questões de cogentes, de ordem pública. Para exemplificar a situação do ato anulável, importante analisar a decisão proferida pelo Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, que julgou improcedente dúvida registral, e determinou o registro imobiliário de escritura pública em que o vendedor foi representado no negócio jurídico pelo próprio comprador. O art. 117 do Código Civil estabelece que tal negócio é anulável. O Conselho Superior da Magistratura entendeu que a anulabilidade é questão de ordem privada, e não deveria o registrador impedir o registro, pois caberia ao interessado, caso eventualmente tenha havido prejuízo, buscar os meios legais para ver declarada a anulação do negócio jurídico (Apelação Cível n° 3002501-95.2013.8.26.0590 Apelante: Antônio Carlos Alves da Silva Apelado: Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de São Vicente VOTO N° 34.084). No voto, o Corregedor Geral da Justiça e relator, Dr. Hamilton Elliot Akel assim sintetizou: “Trata-se de nulidade relativa, que não pode ser pronunciada de ofício pelo juiz, tampouco pelo registrador.” É importante ressaltar que, apesar de ser possível a lavratura de escritura pública de negócios jurídicos meramente anuláveis, é dever do tabelião de notas orientar o interessado sobre a causa de anulabilidade presente no negócio jurídico, deixando-o ciente de como evitar a causa de anulabilidade e também sobre as consequências de celebração do negócio com o vício relativo.
9 DELGADO, Mário Luiz; MARINHO JÚNIOR, Jânio Urbano. Posso renunciar à herança em pacto antenupcial? Revista IBDFAM – Famílias e Sucessões nº 31.
10 MADALENO, Rolf. Renúncia de herança no pacto antenupcial. Revista IBDFAM – Famílias e Sucessões nº 27.
do Código Civil (pacta corvina), como diz notório respeito a um
mero benefício vidual, passível de plena e prévia abdicação,
que, obviamente, em contratos sinalagmáticos precisa ser
reciprocamente externada pelo casal, constando como um dos
capítulos do pacto antenupcial ou do contrato de convivência,
condicionado ao evento futuro da morte de um dos parceiros e
da subsistência do relacionamento afetivo por ocasião da morte
de um dos consortes e sem precedente separação de fato ou
de direito.”
Apesar do grande respeito que temos pelos doutrinadores acima mencionados, entendemos não ser possível renunciar à herança em pacto antenupcial por afrontar disposição expressa de lei. Não há qualquer dúvida de que essa renúncia configura “pacta corvina”11, ou seja, disposição sobre herança de pessoa viva12, que é expressamente vedada pelo Código Civil13. Além disso, disposição que afastasse o cônjuge da qualidade de herdeiro feriria de forma cabal o disposto no art. 1.829 do Código Civil.
A ementa abaixo reproduzida demonstra que esse também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL – SUCESSÃO – CÔNJUGE
SUPÉRSTITE – CONCORRÊNCIA COM ASCENDENTE,
INDEPENDENTE O REGIME DE BENS ADOTADO NO
CASAMENTO – PACTO ANTENUPCIAL – EXCLUSÃO DO
SOBREVIVENTE NA SUCESSÃO DO DE CUJUS – NULIDADE
DA CLÁUSULA – RECURSO IMPROVIDO. 1 – O Código Civil
de 2.002 trouxe importante inovação, erigindo o cônjuge como
concorrente dos descendentes e dos ascendentes na sucessão
legítima. Com isso, passou-se a privilegiar as pessoas que,
apesar de não terem qualquer grau de parentesco, são o eixo
central da família. 2- Em nenhum momento o legislador
condicionou a concorrência entre ascendentes e cônjuge
supérstite ao regime de bens adotado no casamento. 3 – Com
a dissolução da sociedade conjugal operada pela morte de
um dos cônjuges, o sobrevivente terá direito, além do seu
quinhão na herança do de cujus, conforme o caso, à sua
meação, agora sim regulado pelo regime de bens adotado
no casamento. 4 – O artigo 1.655 do Código Civil impõe a
nulidade da convenção ou cláusula do pacto antenupcial
que contravenha disposição absoluta de lei. 5 – Recurso
improvido. (REsp 954567/PE – RECURSO ESPECIAL
2007/0098236-3 – Rel.: Ministro MASSAMI UYEDA – DJe
18/05/2011) – grifamos.
11 A expressão deriva de corvo, ave relacionada à morte.
12 A proibição deriva do Direito Romano que orientava que a especulação sobre a morte de determinada pessoa contraria a moral e os bons costumes. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito das sucessões. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2010).
13 De fato, estabelece o art. 426 do Código Civil que: “Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.”
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou também sobre a impossibilidade de renúncia de direitos hereditários antes de efetivada a condição de herdeiro. Para o STJ, a disposição de herança, seja sob a forma de cessão dos direitos hereditários ou de renúncia, pressupõe a abertura da sucessão, sendo vedada a transação sobre herança de pessoa viva. Nesse sentido acórdão proferido em 2017, cuja ementa abaixo se reproduz:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AGRAVO
DE INSTRUMENTO EM PROCESSO DE INVENTÁRIO.
TRANSAÇÃO SOBRE HERANÇA FUTURA. NULIDADE.
DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
- Não configura ofensa ao art. 535, I e II, do Código de
Processo Civil de 1973 o fato de o Tribunal de origem,
embora sem examinar individualmente cada um dos
argumentos suscitados, adotar fundamentação contrária à
pretensão da parte recorrente, suficiente para decidir
integralmente a controvérsia.
- Acórdão recorrido que manteve a nulidade de cessão de
direitos hereditários em que os cessionários dispuseram de
direitos a serem futuramente herdados, expondo
motivadamente as razões pelas quais entendeu que o
negócio jurídico em questão não dizia respeito a
adiantamento de legítima, e sim de vedada transação
envolvendo herança de pessoa viva.
- A reforma do julgado demandaria, necessariamente, o
reexame do conjunto fático-probatório dos autos, providência
incompatível com a via estreita do recurso especial, nos termos
da Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça.
- Embora se admita a cessão de direitos hereditários,
esta pressupõe a condição de herdeiro para que possa
ser efetivada. A disposição de herança, seja sob a
forma de cessão dos direitos hereditários ou de renúncia,
pressupõe a abertura da sucessão, sendo vedada a
transação sobre herança de pessoa viva.
- Agravo interno não provido. (AgInt no REsp 1341825 / SC
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL
2012/0184431-5 – Ministro RAUL ARAÚJO – 4ª Turma – DJe
10/02/2017) – sem grifos no original.
Assim, a cláusula em que o nubente renuncia à herança do outro não pode ser incluída no pacto antenupcial. Em Minas Gerais, os tabeliães de notas, assim, como os registradores de imóveis, podem suscitar dúvida ao juiz, conforme previsão do Código de Normas, Provimento nº 260 da CGJ/MG, art. 124 e seguintes14. Caso os interessados não se conformem com a recusa do tabelião em lavrar o pacto com cláusula que estabeleça a renúncia à herança, é possível encaminhar procedimento
14 CORREGEDORIA-Geral de Justiça de Minas Gerais. Provimento nº 260/2013, art. 124 e seguintes. Disponível em: http://www8.tjmg.jus.br/institucional/at/pdf/cpr02602013.pdf. Acesso em: 3 dez. 2019.
de dúvida ao juízo competente para Registros Públicos, para que ele se manifeste a respeito.
3) É POSSÍVEL, NO PACTO ANTENUPCIAL, A RENÚNCIA AO DIREITO REAL DE HABITAÇÃO?
No mesmo caso apresentado ao Cartório do Barreiro, foi solicitado que constasse no pacto antenupcial que o imóvel onde a família residiria somente poderia ser utilizado pela mulher, na hipótese de falecimento do marido, por um período de 6 (seis) meses, porque se tratar de bem que o nubente deseja que seja exclusivamente de seus filhos.
Como entendemos não ser possível a renúncia à herança enquanto o proprietário dos bens estiver vivo, entendemos não ser possível a determinação acima, posto que, caso o cônjuge proprietário do imóvel faleça antes de sua esposa, ela será herdeira dos bens deixados, juntamente com os filhos do falecido. Além disso, há que se considerar que o cônjuge sobrevivente tem direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, caso seja esse imóvel o único dessa natureza a inventariar. É o que prevê o art. 1831, do Código Civil.
Sobre o tema, o STJ já se manifestou no sentido de que “o cônjuge sobrevivente tem direito real de habitação sobre o imóvel em que residia o casal, desde que seja o único dessa natureza e que integre o patrimônio comum ou particular do cônjuge falecido no momento da abertura da sucessão” (REsp 1.273.222/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/6/2013, DJe de 21/6/2013). E no mesmo sentido foi o recente acórdão, cuja ementa abaixo se reproduz:
Ementa: AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL.
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO REIVINDICATÓRIA. DIREITO
REAL DE HABITAÇÃO PARA CÔNJUGE SUPÉRSTITE.
POSSIBILIDADE. AGRAVO PROVIDO PARA
RECONSIDERAR A DECISÃO AGRAVADA. NOVO EXAME
DO FEITO. AGRAVO CONHECIDO PARA DAR PROVIMENTO
AO RECURSO ESPECIAL.
- A jurisprudência desta Corte é no sentido de “que o
cônjuge sobrevivente tem direito real de habitação sobre o
imóvel em que residia o casal, desde que seja o único dessa
natureza e que integre o patrimônio comum ou particular do
cônjuge falecido no momento da abertura da sucessão”
(REsp 1.273.222/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO
SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/6/2013,
DJe de 21/6/2013)
- Agravo interno provido para reconsiderar a decisão
agravada e, em novo exame do feito, conhecer do agravo
para dar provimento ao recurso especial. (AgInt no REsp
1525456/SP- AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL
2012/0219156-9 – Ministro RAUL ARAÚJO – 4ª Turma – DJe
21/06/2019)
O STJ também já se manifestou especificamente em casos que envolvem filhos exclusivos do falecido, afirmando que: “A distinção entre casos de direito de habitação relativos a ‘famílias com verticalidade homogênea’ não está na lei, que, se
o desejasse, teria distinguido, o que não fez, de modo que realmente pretendeu o texto legal amparar o cônjuge supérstite que reside no imóvel do casal”. Para o Ministro Beneti, de acordo com a jurisprudência do STJ, o direito real de habitação sobre o imóvel que servia de residência do casal deve ser conferido ao cônjuge/companheiro sobrevivente “não apenas quando houver descendentes comuns, mas também quando concorrerem filhos exclusivos do de cujos” (REsp 1.134.387).
Assim, entendemos que a cláusula solicitada, de que o imóvel onde a família residiria somente poderia ser utilizado pela mulher, na hipótese de falecimento do marido, por um período de 6 (seis) meses, seria uma renúncia feita em pacto antenupcial ao direito real de habitação, disposição nula por ferir a lei civil. Caso os requerentes não se conformem com a negativa do Tabelião em lavrar o pacto com essa cláusula, pode ser suscitada dúvida, conforme Código de Normas de Minas Gerais15.
CONCLUSÃO
A doutrina tem afirmado, desde Beviláqua, que é nula a manifestação de vontade relativa a direitos hereditários futuros, tendo em vista a vedação legal à disposição contratual de herança de pessoa viva de que trata o art. 426 do Código Civil. Há que se considerar, também, que a norma que estabelece que o cônjuge é herdeiro necessário é cogente, não comportando, portanto, negociação. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça veda a disposição referente à herança de pessoa viva. Se é assim, como poderia o Tabelião lavrar um ato cuja nulidade é estabelecida por lei e reconhecida pela jurisprudência?
Cabe ao tabelião agir com precaução, orientando as partes sobre o melhor caminho e evitando futuros litígios. Lavrar um pacto antenupcial no qual constasse renúncia à herança de pessoa viva, com certeza não seria o mais adequado ao interesse das partes e geraria conflitos no futuro.
Na visão das autoras deste artigo, a melhor opção para o nubente proprietário de imóvel que não quer que o mesmo seja objeto de herança do futuro cônjuge, seria a doação do imóvel aos filhos, com reserva de usufruto, antes do casamento. Essa é a única hipótese segura posto que, mesmo na eventualidade de o juiz competente para registros públicos autorizar a lavratura do pacto com as cláusulas de renúncia de herança e de direito de habitação, podem as referidas cláusulas ser declaradas ilegais no futuro, em discussão judicial sobre a herança.
REFERÊNCIAS
ASSUMPÇÃO, Letícia Franco Maculan. O CONTRATO MATRIMONIAL, O PACTO ANTENUPCIAL E O DIREITO À INTIMIDADE: reflexões sobre o regramento do Brasil e de Portugal. Disponível em: http://www.cnbsp.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MTQ4NjY=&filtro=&D
ata=. Acesso em: 3 dez. 2019.
15 CORREGEDORIA-Geral de Justiça de Minas Gerais. Provimento nº 260/2013, art. 124 e seguintes. Disponível em: http://www8.tjmg.jus.br/institucional/at/pdf/cpr02602013.pdf. Acesso em: 3 dez. 2019.
BRANDELLI, Leonardo. Teoria geral do direito notarial. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
CORREGEDORIA-Geral de Justiça de Minas Gerais. Provimento nº 260/2013, art. 124 e seguintes. Disponível em: http://www8.tjmg.jus.br/institucional/at/pdf/cpr02602013.pdf. Acesso em: 3 dez. 2019.
DELGADO, Mário Luiz; MARINHO JÚNIOR, Jânio Urbano. Posso renunciar à herança em pacto antenupcial? Revista IBDFAM – Famílias e Sucessões nº 31.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 2 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010. p.240.
GOZZO, Débora. Pacto Antenupcial, Tese (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1988, p. 2.
KÜMPEL, Vitor Frederico. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Registralhas/98,MI215954,31047-
Consideracoes+acerca+do+pacto+antenupcial+II. Acesso em: 25 nov. 2019.
MADALENO, Rolf. Renúncia de herança no pacto antenupcial. Revista IBDFAM – Famílias e Sucessões nº 27.
PUGLIESE, Roberto J. Direito notarial brasileiro. São Paulo: Ed. Universitaria de Direito, 1989.
TEPEDINO, Gustavo. O papel do tabelião no ordenamento jurídico brasileiro e a interpretação do art. 38 da Lei 9.514/97. Disponível em: http://civilistica.com/wp content/uploads/2012/11/O-papel-do-tabeli%C3%A3o-civilistica-2.2012.pdf. Acesso em: 25 nov. 2019.
SUPERIOR Tribunal de Justiça. REsp 954567/PE – RECURSO ESPECIAL 2007/0098236-3 – Rel.: Ministro MASSAMI UYEDA – DJe 18/05/2011.
SUPERIOR Tribunal de Justiça. REsp 1.134.387. Relatora Ministra NANCY ANDRIGHI. 3ª Turma. DJe 18/12/2012.
SUPERIOR Tribunal de Justiça. REsp 1.273.222/SP. Relator Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO 3ª Turma. DJe de 21/6/2013.
SUPERIOR Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1341825/SC. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL 2012/0184431-5. Relator Ministro RAUL ARAÚJO. 4ª Turma. DJe 10/02/2017.
SUPERIOR Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1525456/SP. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL 2012/0219156-9. Relator Ministro RAUL ARAÚJO. 4ª Turma. DJe 21/06/2019.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito das sucessões. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2010
* Gabriela Franco Maculan Assumpção – Graduanda em Direito pela PUC/MG. Foi Oficial Substituta no Cartório de Registro Civil e de Notas do Distrito do Barreiro, em Belo Horizonte, MG. Estagiária de Direito na JHCG Advocacia.
** Letícia Franco Maculan Assumpção – Graduada em Direito pela UFMG, pós graduada, mestre e doutoranda em Direito. Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. Diretora do Instituto Nacional de Direito e Cultura – INDIC. Professora e co-coordenadora da Pós-Graduação em Direito Notarial e Registral na parceria INDIC-CEDIN. Vice-Presidente do Colégio Registral de Minas Gerais e Diretora do Recivil e do CNB/MG. Autora dos livros Notas e Registros, Casamento e Divórcio em Cartórios Extrajudiciais do Brasil e Usucapião Extrajudicial, além de diversos artigos na área do direito notarial e registral.