O PAPEL DOS NOTÁRIOS NO ENFRENTAMENTO DA “LAVAGEM” DE DINHEIRO
Letícia Franco Maculan Assumpção
Renata Megda Garcia*
Letícia Franco Maculan Assumpção**
- Introdução
A “lavagem” de dinheiro, codificada na Lei nº 9.613/98, é modalidade criminosa que visa à ocultação de bens, direitos e valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. O tipo penal da “lavagem” elenca em seus parágrafos diversas condutas essenciais para a capitulação desse crime, sem que seja necessário, para ocorrer sua efetiva consumação, que circulem na economia os bens ilícitos dotados de licitude, bastando a simples ocultação ou dissimulação de sua origem ilegal.[1]
A inserção dessa lei no ordenamento jurídico brasileiro, em 1998, foi reflexo da adesão do país à Convenção das Nações Unidas para Repressão do Tráfico Internacional de Drogas e substâncias entorpecentes, ocorrida na cidade de Viena, Áustria, em 1988. Os signatários dessa Convenção ficaram obrigados a tipificar a conduta de “lavagem” de dinheiro nos seus ordenamentos internos, criando legislação específica para isso.
Vale aqui um comentário sobre as divergências doutrinárias acerca da independência ou não do crime previsto na Lei de “lavagem” diante de seu crime antecedente que deu proveniência aos bens ilícitos. Parte da doutrina defende a não existência de um crime de reciclagem de capitais e que este seria o mero exaurimento do crime anterior, não configurando independência suficiente para suscitar novas capitulações, condenações e apenações para a mesma conduta[2]. Contudo, outra vertente percebe como a complexidade em “Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal” basta para que se configure novo crime, que pode e deve gerar condenação independente[3]. Fica aberta a discussão e a reflexão, e volta-se para a análise intentada.
No Brasil, além de serem tipificadas as condutas descritas no art. 1º da Lei 9.613/98, foi criado o Coaf – Conselho de Controle de Atividades Financeiras – no art. 14 desse mesmo dispositivo legal. O Coaf é a Unidade de Inteligência Financeira do país “com a finalidade de disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas nesta Lei, sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades”[4]. É o órgão para o qual as pessoas físicas e jurídicas descritas no art. 9º da Lei de “lavagem” devem encaminhar as informações acerca de operações realizadas perante elas, no exercício de suas funções profissionais, que possam caracterizar, em alguma medida, tentativa de ocultação ou dissimulação de bens, valores e direitos ilícitos.
Importante salientar que o Coaf não é uma Unidade investigativa; suas competências são as de “receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas; comunicar às autoridades competentes nas situações em que o Conselho concluir pela existência de crimes de “lavagem”, ocultação de bens, direitos e valores, de fundados indícios de sua prática ou de qualquer outro ilícito; coordenar e propor mecanismos de cooperação e de troca de informações que viabilizem o combate à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores. O §1º do art. 14 da Lei também atribuiu ao COAF a competência de disciplinar e aplicar penas administrativas nos setores econômicos, previstos na mesma Lei, para os quais não haja órgão regulador ou fiscalizador próprio.”[5] Dessa maneira, os papéis investigativos e judiciais dos crimes de “lavagem” cabem ao Ministério Público e à Polícia Federal, não ao Coaf.
Ademais, a Lei nº 9.613/98 foi modificada em alguns aspectos penais, processuais penais e administrativos pela Lei 12.683/12. Como exemplo de importante alteração, tem-se a exclusão do rol de condutas originalmente taxadas no art. 1º da Lei de “lavagem”: com a revogação dos incisos do art. 1º, toda infração penal que levantar bens ou direitos ilícitos pode ser conduta antecedente de “lavagem” de dinheiro.
A alteração que mais interessa a esse trabalho é a inserção de novas pessoas físicas e jurídicas à subordinação ao Coaf, no art. 9º da Lei 9.613/98. Dentre elas, estão as Juntas Comercias e os registros públicos (inciso XIII), não incluindo os Cartórios de notas e os de protesto.
Verifica-se, então, que por estarem os “registros públicos”, a partir de 2012, elencados no inciso XIII, art. 9º, da Lei 9.613/98, sujeitam-se esses tanto às obrigações de encaminhar ao Coaf informações pertinentes quanto às sanções oriundas do não cumprimento de suas atribuições. Destarte, pode-se dizer que os Cartórios de Registro nacionais foram promovidos a auxiliares legais no combate à “lavagem” de dinheiro. Desenvolver-se-á, no texto que segue, ideias pertinentes a esse auxílio e à suas consequências.
*Renata Megda Garcia é graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2016-2020) e integrante do grupo de pesquisa Grupo de Estudos em Teoria do Delito e Direito Penal Empresarial – GEPE, da Universidade Federal de Minas Gerais.
** Letícia Franco Maculan Assumpção é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), pós-graduada e mestre em Direito Público. Foi Procuradora do Município de Belo Horizonte e Procuradora da Fazenda Nacional. Aprovada em concurso, desde 1º de agosto de 2007 é Oficial do Cartório do Registro Civil e Notas do Distrito de Barreiro, em Belo Horizonte, MG. É autora de diversos artigos na área de Direito Tributário, Direito Administrativo, Direito Civil e Direito Notarial, publicados em revistas jurídicas, e dos livros Função Notarial e de Registro e Casamento e Divórcio em Cartórios Extrajudiciais do Brasil. É Diretora do INDIC – INSTITUTO NACIONAL DE DIREITO E CULTURA e Coordenadora da pós-graduação em Direito Notarial e Registral do CEDIN – CENTRO DE DIREITO E NEGÓCIOS. É Presidente do Colégio do Registral de Minas Gerais e Diretora do CNB-MG.
[1]Nesse sentido, ver: BADARÓ, G. H., BOTTINI, P. C. (2012). Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012, p. 25.
[2]Indicada a leitura da página 259 de RODRÍGUEZ, V. G. de O., LAW, T. (2013) Autolavagem e evasão de divisas: elementos mínimos de interpretação para a autonomia da lavagem de dinheiro, diante da lei brasileira. São Paulo: LiberArs.
[3]Para melhor compreensão, é interessante ler FROSSARD, D. (2004). A lavagem de dinheiro e a lei brasileira. Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 22-30; assim como DÍAZ-MAROTO Y VILLAREJO, J. (2000). Algunas notas sobre el delito de blanqueo de capitales. p. 471-497. Ainda nesse sentido: REsp 1170545/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 02/12/2014, DJe 16/03/2015.
[4] Lei 9.613, de 3 de março de 1998. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9613.htm>. Acesso em 7 de outubro de 2017.
[5] Disponível no “Relatório de Atividades 2016 – Coaf – Conselho de Controle de Atividades Financeiras.”
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